Durante uma expedição pela Chapada dos Veadeiros, em dezembro de 2020, o jovem naturalista Estevão Santos e o biólogo Marcelo Kuhlmann foram surpreendidos por um encontro totalmente inesperado: ficaram frente a frente com uma saíra-de-cabeça-azul, subespécie Stilpnia (Tangara) cyanicollis albotibialis, registrada nesta região pela primeira e única vez em 1929, há quase cem anos.
A saída foi organizada para observar interações entre aves e a flora local, já que na época das chuvas aumenta a quantidade de frutos e sementes disponíveis na mata.
O que eles não imaginavam, porém, era observar a misteriosa saíra logo no começo do percurso. “Quando chegamos na beira do rio São Miguel a gente viu uma pixirica, que pertence a um grupo de plantas frutíferas muito comum no Cerrado.
E aí eu me lembro de ver um passarinho saltando na ponta da árvore, de um galho ao outro. A cor escura dele me chamou a atenção, porque era bem visível mesmo sem a utilização do binóculo.
Quando eu bati o binóculo eu vi imediatamente que era essa saíra e quase caí pra trás”, conta Estevão.
Toda a emoção do flagrante é justificada não só pela raridade do encontro, mas pela feliz coincidência do local de observação: o registro foi feito na mesma região que o naturalista Blaser coletou o primeiro e único indivíduo da subespécie, em 1929.
“Eu acessei um catálogo virtual para conferir as espécies que ele coletou durante as expedições feitas em Goiás, em meados 1929, e através da localidade e das datas de coleta tracei um itinerário tentando assimilar quais lugares ele tinha percorrido.
No caso dessa saíra, as únicas informações da etiqueta são ‘Veadeiros (antigo nome da cidade de Alto Paraíso), Rio São Miguel’, ou seja, ele coletou a espécie no mesmo rio em que a gente redescobriu ela, possivelmente até na mesma área”, destaca o jovem naturalista.
De acordo com a lista do Comitê Brasileiro de Registros Ornitológicos (CBRO), algumas espécies de saíra antes do gênero Tangara passaram a ser alocadas no gênero Stilpnia
Desafio na mata
A falta de informações sobre a subespécie desafiou os cientistas na identificação.
“No campo eu fiquei prestando atenção aos detalhes que discerniam ela, como o papo roxo e a barriga azul, e até as escassas manchas brancas na perna.
As fotos quase não mostram esses detalhes, porque são bem sutis”, explica Estevão, que além dos estudos bibliográficos se lembrou de uma conversa com o biólogo Roberto Brandão Cavalcante.
“Em 1980 ele e o Willis, também biólogo, avistaram a espécie na mesma região, mas não fizeram registros.
O Roberto conversou pessoalmente comigo e disse que na época o Willis destacou a perna branca como uma das características da ave”, detalha. “Esse bicho sempre foi misterioso, enigmático. Ninguém conhecia ele”.
Artigo e divulgação
“Foi legal porque ela estava se alimentando de uma espécie de pixirica (Miconia minutiflora) que eu ainda não tinha registrado – sendo que estou há mais de 15 anos percorrendo o Cerrado, registrando essas interações ecológicas de frutos e animais.
Então foram dois primeiros registros pra mim: o da ave e o do fruto”, diz.
As fotografias da ave se alimentando do fruto da pixirica, assim como as observações registradas em campo, permitiram que os pesquisadores publicassem um artigo científico comprovando a redescoberta da subespécie.
“O local que a gente fez o avistamento é uma propriedade particular com cerca de 80% da vegetação nativa conservada.
Descobertas e artigos como esses também têm o papel de destacar a importância da conservação e mostrar que, em ambientes conservados, vivem espécies raras, ou até mesmo desconhecidas”, comenta Marcelo Kuhlman, que foi surpreendido duplamente durante o flagrante.
“Não há quase nada na literatura sobre a historia natural dessa subespécie.
Foi um achado raro nos dois sentidos, tanto da subespécie pra região, quanto da interação ecológica entre a saíra e os frutos da pixirica”, disse o biólogo Marcelo Kuhlmann.
Saíra-de-cabeça-azul
A ave encontrada pelos pesquisadores na Chapada dos Veadeiros é uma saíra-de-cabeça-azul, Stilpnia cyanicollis, que ocorre na Amazônia e no oeste do Cerrado (sul do Pará, Tocantins, Goiás e Mato Grosso).
São conhecidas sete subespécies dessa saíra, mas somente duas ocorrem no Brasil: a Stilpnia cyanicollis melanogaster, que ocorre também na Amazônia; e a Stilpnia cyanicollis albotibialis, encontrada até agora somente na Chapada dos Veadeiros (redescoberta pelos pesquisadores).
Entenda: subespécies não possuem nome popular. A ave redescoberta é uma subespécie da saíra-de-cabeça-azul
A área restrita de ocorrência da ave redescoberta após quase 100 anos é reflexo da característica do Cerrado: um bioma com interferências de vários outros domínios naturais. “O Cerrado está no centro do Brasil e recebe influencia de quase todos os biomas ; por isso tanta diversidade.
O bioma não é homogêneo, cada região tem uma fauna e flora específica e tudo isso agrega ainda mais valor pra gente continuar pesquisando e explorando cada canto deste País”, destaca Marcelo.
Marcelo ainda destaca que “toda flora tem uma fauna associada, e vice-versa.
A Chapada trás esses elementos de influência Atlântica e Amazônica, por exemplo.
Isso só serve pra gente exemplificar que o Cerrado é uma ponte entre todos os biomas nacionais”.
Conheça o Cerrado
A experiência vivida por Marcelo e Estevão despertou nos pesquisadores um alerta: a importância de olhar para o bioma como um todo e investir em expedições pelas matas do Cerrado.
“Quem visita a Chapada dos Veadeiros busca explorar os cerrados e campos – vegetação característica da região que está desaparecendo por conta da devastação.
Nisso, as matas mais remotas, nas encostas dos morros e grotas, praticamente não são exploradas, e é lá que ficam os ‘tesouros’ escondidos”, destaca Estevão, que lembra de outra observação rara e histórica para o bioma.
“Em 2012 um ornitólogo encontrou um casal de cabecinha-castanha (Pyrrhocoma ruficeps), em outra fazenda de Alto Paraíso. Até então essa espécie era conhecida só em parte do Sudeste e no Sul do Brasil.
E aí ele encontra em um ponto isolado, no meio do Brasil Central.
Pra mim essa foi uma descoberta muito importante que contribuiu para revelar várias questões sobre as afinidades entre as matas do Cerrado com a Mata Atlântica, por exemplo”, diz.
“A distribuição das espécies no Cerrado é muito curiosa.
Um conselho importante para observadores, cientistas e ornitólogos é: extrapolem seus limites durante as expedições florísticas e faunísticas, desçam as grotas e os morros, explorem ambientes remotos, entrem nas matas.
A Chapada tem muitas áreas que merecem ser conhecidas”, finaliza Estevão.
Informações do site G1