O olhar de Amanaci traz uma história de luta e superação.
Há um ano, a onça-pintada tornou-se um dos principais símbolos da negligência humana que ocorreu no Pantanal, quando incêndios destruíram parcialmente o paraíso de biodiversidade.
Em meio a milhões de hectares de mata queimados e milhares de animais mortos, a felina quase teve suas pegadas para sempre apagadas da história: precisou enfaixar as patas após sofrer queimaduras de terceiro grau.
As feridas, hoje, recuperadas, deixaram marcas profundas, pois a onça-pintada não poderá voltar a vagar livremente pelo Pantanal brasileiro. Apesar disso, segue fazendo história no mundo animal.
Amanaci iniciou o tratamento no Nex no Extinction, um criadouro científico para fins de conservação que funciona em Girassol (GO), no Entorno do Distrito Federal. A felina chegou em 21 de agosto, em grande agonia.
O fogo destruiu completamente os coxins das quatro patas. A estrutura se assemelha a almofadinhas e permite melhor apoio do animal.
A pele estava em carne viva, com exposição dos ossos. Ela chegou ao instituto junto com o macho Ousado, que também tinha feridas das chamas, mas recebeu alta e foi reinserido no Pantanal.
Amanaci não pôde ter o mesmo fim.
“Ela perdeu parte dos tendões, e as garras já não saem da pata, então não pode mais caçar ou se defender, por isso, não voltará ao Pantanal”, explica a diretora-executiva Cristina Gianni.
A felina deverá continuar no criadouro. “Ela se adaptou bem.
Agora, tem um recinto só dela e, apesar de não correr, porque ainda tem um pouco de sensibilidade, se recuperou da queimadura de terceiro grau”, garante.
De acordo com a equipe de tratadores, o motivo de Amanaci ter sofrido tantas escoriações ocorreu porque tentava proteger das chamas uma cria, nascida há pouco tempo.
A conclusão se deu a partir da observação das mamas, que indicavam que ela estava em fase de amamentação.
“Começamos a questionar o porquê da Amaneci ter ficado tanto tempo exposta ao fogo. É um animal predador, que tem os seus sentidos mais avançados, então percebe o cheiro da fumaça, o barulho do fogo. O animal poderia fugir, mas ela não o fez.
Imaginamos que ela estava com filhote, vários indícios mostravam isso. A mãe não abandona o filhote nunca. Ela tentou, lutou pela sua cria até o fim”, explica o cuidador da Amanaci, Rogério Silva.
Futuro promissor
Apesar de não retornar ao Pantanal, o futuro da onça-pintada tende a ser promissor.
Há uma semana, mudou de recinto e foi morar ao lado de Guarani, um macho da mesma espécie.
“Queremos que eles se conheçam devagarinho para se reproduzirem e, se possível, reintroduzi-lo no Pantanal”, explica o diretor-executivo do Nex no Extinction, Silvano Gianni.
De acordo com ele, tudo será feito com calma. “Deixamos eles perto para que, quando ela entrar no cio, ele já sinta o cheiro e passe a ter interesse. Vamos esperar cerca de dois ciclos até abrir as portas e tornar o criadouro um só”, completa.
Guarani faz parte do grupo de onças-pintadas “humanizadas”, ou seja, teve uma relação direta com seres humanos.
“Quando ele era mais novo, se separou da mãe em um incêndio, também no Pantanal.
Se ele for solto, sai em busca de humanos, o que não pode acontecer. Também o colocamos perto da Amanaci para que seu instinto de onça aflore”, detalha Silvano.
Em caso de cria, o diretor-executivo diz que haverá o monitoramento dos filhotes por meio de um colar de GPS. “Não interferimos na vida dele, mas sabemos onde ele está.
Dessa forma, o pesquisador vê se tem fezes, se comeu. Ou seja, trabalha remotamente com o acompanhamento do indivíduo que soltamos”, diz.
Recuperação
A onça-pintada passou pelo tratamento de aplicação de células-tronco.
“Nós já usamos células-tronco em outra onça que teve fratura exposta. O material guardado foi usado em Amanaci, até que reproduziu células-tronco próprias.
Isso, provavelmente, foi o que a salvou”, avalia Silvano.
Além disso, a recuperação contou com os procedimentos de ozonioterapia e laserterapia, que ajudaram a curar a pele queimada das patas. Ao todo, foram 36 sessões, com anestesia.
A onça-pintada foi encontrada há quase dois meses, escondida em um galinheiro em Poconé (MT), onde se abrigou do fogo.
De acordo com o cuidador da Amanaci, Rogério Silva, muitos animais que tinham o estado de saúde semelhante ao dela foram sacrificados. “Amanaci chegou a ir para o corredor da morte, mas é um animal que chama muito a atenção.
É muita responsabilidade de quem dá a ordem no caso de abatimento. Até então, não existia nenhum protocolo de como cuidar de um animal queimado.
Por meio do tratamento de Amanaci, do que ela nos ensinou, já existe um protocolo”, comemora.
NEX: não à extinção
O Instituto NEX é uma associação sem fins lucrativos que mantém um criadouro científico para fins de conservação, definido pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) como empreendimento.
Com a finalidade de criar, recriar, reproduzir, e manter espécimes da fauna silvestre nativa em cativeiro objetivando realizar e subsidiar programas de conservação, recebe felinos que ficam abrigados provisoriamente.
Atualmente, o espaço cuida 24 felinos, sendo 23 onças de diferentes espécies e uma jaguatirica.
“São animais, de forma geral, que viram suas mães serem mortas e têm bastantes sequelas de sofrimento. Quando chegam aqui, a gente tem não só que abrigar, mas também reabilitar”, diz a fundadora e diretora-executiva, Cristina Gianni. A logomarca oficial do instituto é uma onça-pintada sob a mira de uma arma.
De acordo com a fundadora, a escolha pelos felinos surgiu em 2000, quando, até então, ninguém os acolhia.
“A gente tenta ajudar na conservação da onça-pintada. O cativeiro das onças que ficam aqui não pode ser em vão. Aqui, aprendemos com elas. Aprendemos que não podemos destruir o ambiente, que precisamos preservar”, alerta. Para mais informações sobre a instituição, acesse: https://nex.org.br/.